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Pai sem rosto: a fantasia infamiliar

  • felipebierpsicanal
  • May 22, 2021
  • 5 min read




Felipe Bier


O coração do argumento freudiano sobre o Unheimlich é sua ambiguidade: há, para Freud, entre os sentidos de familiar e o infamiliar, um elemento que habita uma zona de transição entre-sentido, ponto que escapa à interpretação e que desarranja. Se Freud fala do umbigo do sonho em se tratando da principal formação do inconsciente, de que modo falaríamos do Unheimlich?

Ao longo de seu ensaio, Freud sai à busca deste entre-sentido, fazendo um censeamento de situações inquietantes, movimento cuja missão é delinear algumas funções inquietantes: a saber, uma série de operações que causam divisão no indivíduo e o colocam face a face com isto a que se chama infamiliar. O inquietante se encontraria, por exemplo, no pedaço destacado de um todo, um objeto desatarraxado (como nos exemplos dos autômatos); ou, em sua formulação clássica, em "tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu" (FREUD, 2010, p.338). Fala-se de perturbações dos nós do sujeito, cuja angústia decerto aponta para o real. Mas Freud parece ciente de que não se trata de qualquer irrupção: há, no Unheimlich, um desarranjo na produção de sentido, no qual o sujeito se achata.

Disto, Freud deixa algumas pistas. É digno de nota que, em sua análise do conto de Hoffmann - "O homem de areia" - as oscilações do olhar de Nathaniel ocupem lugar central no efeito infamiliar: ora como "olhante", ora como "olhado", a personagem oscila entre a posição de sujeito e objeto, e de algum modo parece habitar esta zona de transição, sem sair dela definitivamente. Veja-se a cena em que Nathaniel, ao modo do Homem dos Lobos, espia a transação entre o pai e Coppelius, em que algo está em jogo, à mostra para os indivíduos em transação, porém velado ao protagonista: Coppelius diz, à frente de um forno flamejante, "Olhos aqui, olhos aqui!".

A ambiguidade da cena é elevada por Freud à ambiguidade da posição infantil, já que o que funciona como objeto de transação, entre Coppelius e o pai, permanece, da posição de "olhante", como mistério. Mas ao ser descoberto - isto é, ao ser "olhado" -, os "olhos aqui" assumem sentido literal, e as palavras de Coppelius assumem tom de mandamento: os teus olhos, menino, nestas brasas. O pai, não obstante, barra a ameaça, e assim se dá o fecho da cena primordial do conto de Hoffmann.

Chega-se assim próximo ao oculto que é revelado, e que configura a emergência do real que julgo ser particular ao fenômeno do Unheimlich: a saber, trata-se de uma ambiguidade concernente à fantasia, na qual o desejo do Outro deve sofrer um corte e uma inversão para que uma operação fálica se sustente. Neste ponto, vem a calhar a referência de Jacques-Alain Miller e a dicotomia que propõe entre sintoma e fantasia: se o primeiro fala, e fala muito, a segunda está, segundo Miller, silenciosamente guardada pelo sujeito precisamente por ser "máquina para transformar gozo em prazer. Como uma máquina, digamos, para domar o gozo, pois o gozo, por seu próprio movimento, se dirige ao desprazer e não ao prazer" (MILLER, 1988, p.143). Aproximando-a do brincar no fort-da, Miller argumenta que a fantasia se instala no local de fundação da metáfora paterna, por tratar-se de fazer algo do gozo da Mãe.

Em sendo "uma máquina que se põe em ação quando se manifesta o desejo do Outro" (MILLER, 1988, p.144), a fantasia deve operar este corte no gozo, alocando-o no campo do objeto para geração de prazer. A utilização, por Miller, de certa terminologia fabril se justifica na medida em que a fantasia de fato produz o desejo e, por consequência, a. Neste sentido, Miller enfatiza a relação estreita da fantasia com o ponto de falta no Outro e sua vizinhança ao A barrado no grafo do desejo: trata-se, diz Miler, da fabricação do prazer a partir do ponto de falta no desejo do Outro, bem como uma falta no campo do significante.

Ao que me parece - e esta é a principal hipótese - a ambiguidade fundamental da fantasia está em seu estatuto: a fantasia é um savoir-faire da falta no Outro ou é máquina que a produz? Creio que ambos, e por isso um horror do não-dizer espreita a fabricação de prazer. Retornando ao fort-da em que a criança faz algo da falta do Outro, tem-se o lado de produção de prazer a partir da falta. Mas, ao avançar-se em direção à fantasia fundamental em sua relação com a falta no campo dos significantes, chegamos ao Freud de "Batem numa criança" e ao território da perversão: daí o inquietante, daí o silêncio, quando a máquina emperra.

Sabemos da construção freudiana do argumento: aquilo que o analisante esconde são os elementos que retira do campo da perversão, elementos estes que, como peças no jogo significante, mudam sua valência - ativo ou passivo - até chegar a um "não sei, batem numa criança". Este não-saber, diz Miller, é "o próprio ponto de falta no Outro como lugar do significante" (MILLER, 1988, p.154). Esta proposição - "uma criança é espancada" - é, segundo Lacan, exemplar por "permitir captar que se esta proposição tem o efeito de se sustentar em um sujeito, é sem dúvida em um sujeito como Freud imediatamente o analisa - dividido pelo gozo" (LACAN, 1992, p.68).

Aqui estamos no campo do que é mais íntimo do sujeito, e que deveria permanecer oculto, e que só vem à luz sob construção em análise. Trata-se, como aponta Lacan, do próprio ponto em que, no jogo de significantes, um sujeito se sustenta: para além da fantasia, um nada. Afirma Lacan: "O Você me espanca é aquela metade do sujeito cuja fórmula tem sua ligação com o gozo. Ele recebe, claro, sua própria mensagem de uma forma invertida - aqui, isto quer dizer seu próprio gozo sob a forma de gozo do Outro" (LACAN, 1992, p.68). Neste ponto, a invenção do pai que espanca na fantasia é o que lhe dá sentido pois dá rosto ao que não tem. Contudo, trata-se de um artifício, como o texto freudiano enfatiza, pois este pai pode ser qualquer outro, é intercambiável: "Deus sem rosto, este é o caso" (LACAN, 1992, p.68).

Este espancamento, continua Lacan, é o da própria linguagem em sua relação mais fundamental com o sujeito: "é por aí que aquilo goza" (LACAN, 1992, p.69). Sugiro que a emergência do real perseguida por Freud no Unheimlich diz respeito a este desarranjo fundamental entre sujeito, gozo e linguagem, que fica à mostra no atravessamento da fantasia: neste ponto de atravessamento, torna-se claro que a fantasia dá rosto ao que não tem. Retornando a Hoffmann, o que emerge como infamiliar advém da ambiguidade pai/Coppelius, o pai do sentido e o pai que espanca: aqui, o que está em questão é menos o desejo do pai, e mais seu gozo, representado pela relação brasas/olhos. O golpe final do Unheimlich vem quando Coppelius se vira a Nathaniel e inverte a valência do gozo: do pai para o sujeito. Este gozo que é inseparável do corpo, este Deus sem rosto, é infamiliar e insuportável. Neste ponto, como na história, o sujeito desfalece.



Bibliografia:


FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil: ("O homem dos lobos"): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

MILLER, Jacques-Alain. Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.



 
 
 

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