Delírios comunistas
- felipebierpsicanal
- Jun 7, 2021
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'Todo mundo delira' é um adágio do último ensino de Jacques Lacan - decerto desenvolvimento esperado de uma teoria que avançou em direção à desconstrução de qualquer vestígio dos discursos mestres, inclusive o do inconsciente. Mas é também uma posição que responde às transformações históricas de sua época. E quais eram estas questões? No nível do discurso, questões que ainda nos acompanham: feminismos, luta de classes, afrontas hierárquicas, etc. Em termos de estrutura, o início do processo que culmina na crise contemporânea: desindustrialização (naquele momento dos países hegemônicos, hoje fenômeno generalizado) aliada à expansão dos meios de comunicação e conectividade, que já naquela época apontavam ao transnacionalismo do capital, império dos mercados financeiros superegóicos, também transnacionais. Daqui, um significante já emerge: trans… voltaremos a ele.
Ponderar se Lacan poderia ter imaginado a implosão das estruturas sociais do século XX a partir das redes sociais de nosso século XXI, e a subsequente revolução dos laços sociais, seria colocá-lo na posição de profeta, que não lhe cabe. Não obstante, é curioso trazer à tona a anedota contada por Jacques-Alain Miller, orientado pelo sogro a largar a luta maoísta e dedicar-se à psicanálise. Decerto movido por seus próprios interesses - a saber, deixar sua obra nas mãos de alguém que considerava brilhante, e que ainda fazia parte da família! -, isto faz pensar nos sintomas de nosso 'mestre'. Mas convém cogitar se não havia, da parte do velho Lacan, o pressentimento de que o transnacionalismo que se anunciava faria caducar as utopias de esquerda: em outras palavras, se o discurso capitalista não preparava uma nova volta no parafuso, dando uma rasteira nos sonhos de revolução que, até hoje, se fundam em reivindicações nacionais.
Todo mundo delira, até o gênio de Marx. Teria Marx delirado quando, em 1848, escreveu sua mais famosa frase: "Um fantasma circula pela Europa - o fantasma do comunismo"? Um pouquinho de wishful thinking, como diriam os anglófonos. Mas eis que, quase duzentos anos depois, o presságio de Marx retorna como paródia de si mesmo, nos delírios de direita que, hoje, configuram o sintoma de nossa época. Os delírios de direita contemporâneos são diferentes do delírio de Miller nos anos 1960: lá, o jovem Miller delirava com a adequação do mundo ao ideal, isto é, contornar o real, costurá-lo, inseri-lo em um novo discurso. Tratava-se, em suma, da reivindicação histérica que contorna a castração para fazer existir a exceção: uma nação que não fosse opressora…
Qual foi a maneira de o discurso capitalista dar uma rasteira nesse modo de utopia? Ora, na falta do salmão, dando-nos caviar para jantar todos os dias. Ou, como tem afirmado Marie-Helène Brousse, o fenômeno de substituição do "Um necessário para fundar o Todo [...] pela singularidade de cada um dos Uns-sozinhos que são os falasseres" (p.159). Há portanto, nas transformações do discurso capitalista neoliberal, a abertura ao gozo do Um-sozinho, que pode passar ao largo do Outro e, como consequência, do desejo. Algo que se vê na clínica é, de fato, a tarefa do psicanalista em dar forma ao desejo, muitas vezes na função de perfurar o saco vazio que é o corpo, como disse uma analisanda em uma construção precisa da relação de transferência. Neste modo de produção que abarrota as utopias de modos-de-gozo solitários, é difícil imaginar por que a ameaça comunista continuaria a fazer sentido.
Não obstante, é o que se observa, mais e mais, em discursos provenientes de grupos de direita. Sem dúvida recheado de certo cinismo na manipulação de opinião, mas ainda assim um discurso que toca algo do sintoma contemporâneo. E qual seria ele? Algo que responde à evaporação do Pai, também no âmbito da produção capitalista. Se pensarmos de modo simplificado, o Pai é imaginado como aquele que responde ao enigma do desejo, e que portanto possui algo que o infante deseja possuir: para isso, ele necessitava abrir mão de um gozo absolutista em benefício de um gozo mais democrático, em que se cede aqui para ganhar ali. O falo modula uma transação e transmite a castração por gerações. Isto traduzido em termos sociológicos indicaria a fantasia que envolvia, em primeiro lugar, a ideia de um desbravador à la Henry Ford, que com autossuficiência e audácia abriu um novo campo da indústria e fez sua fortuna. A grande empresa criada por este pai mítico acolhia os bons filhos sob a prerrogativa de que lá, depois de ceder muito de seu trabalho, seriam recompensados, alcançado posições de destaque social e econômico. O mito do self made man funcionava, portanto, como a exceção que sustenta o todo, fazendo habitar nesta figura o homem que escapou à castração.
As transformações no mundo do trabalho lançaram por terra esta fantasia do século XX. Não só o mito do pai fundador se diluiu, de modo que cada um pode desbravar seu próprio pequeno continente através das mídias sociais, como as empresas não fazem mais nenhuma questão de sustentar a narrativa de recompensas por lealdade e obstinação. Há, no salve-se-quem-puder das microempresas individuais, uma foraclusão generalizada da castração: a meritocracia não surge como produto significante de inserção numa cadeia, mas como marca da pequena exceção à qual qualquer um pode aceder. O que Lacan ensinou a respeito da psicose é que o que é foracluído do simbólico retorna no real: neste caso, se o sujeito se vê como Pai de si próprio, desencadeado em relação à esteira de significantes que o ligam ao sentido coagulado numa carreira, a castração é espectro que paira como ameaça em chave persecutória: seja de modo leve, com o Estado corrupto que gasta excessivamente os tributos recolhidos; seja, por fim, na ameaça comunista, na qual o Pai da horda retorna como o líder autoritário de esquerda que, imaginariamente, forçará a distribuição de gozos.
Existe algo paradoxal na ideia de um delírio distributivo, e este é um paradoxo fecundo à psicanálise que tenciona interpretar os sintomas de seu tempo. O que soa paradoxal é, no fim das contas, que aquilo que sustentava a utopia comunista - uma comunidade de iguais, de irmãos - seja o ponto de maior angústia da direita. Neste ponto, a coisa merece estudo: é possível elaborar, no entanto, uma hipótese que caminha junto à noção de feminização do mundo que hoje está no centro das discussões no interior do campo freudiano. Trata-se de pensar que as entradas da cidade da lei tenham sido barbarizadas, de modo que cada gozo se condensa em seu próprio feudo. Sem fazer referência ao império, cada sujeito é rei de seu próprio latifúndio. Passar ao largo da lei, em matéria de gozo, significa acessar um gozo não-todo: a saber, um gozo que não é repartido e transmitido pelo Pai. Daí destaca-se a relevância de falar-se em capitais transnacionais: hoje o trabalho também é trans, já que a castração não é sentida como impedimentos numa carreira, mas como barragens no real aos ditames de um supereu furioso: empreenda!
Aqui, resta supor que o delírio da direita faz inventar o viril de modo sintomático e a despeito da lei, como reação à evaporação do pai e à vizinhança do gozo. Em outras palavras, o Pai autoritário retorna triunfante - e com uma virilidade comicamente inventada, gambiarra fascista - como tampão ao trabalho feminizado. Outro famoso dito marxista afirmava que a história se repete duas vezes: uma como tragédia, a outra como farsa. Se antes o comunismo trazia ao cerne das discussões o rumo da civilização, hoje trata-se de remexer no gozo do Um-sozinho. Seja como for, Marx continua atual, e continua caminhando lado a lado com a psicanálise.
Referência:
BROUSSE, Marie-Heléne. Mulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2019.
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