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A criança no litoral

  • felipebierpsicanal
  • 1 de jun. de 2021
  • 4 min de leitura



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A criança no litoral


Algo de uma hipótese se forma, lentamente, ainda que a apresente sem rodeios: a criança no contemporâneo é uma escrita no litoral. Tomo como base os desenvolvimentos de Lacan a partir do seminário XVIII, "De um discurso que não fosse semblante", e me atenho a esta ideia - que não fosse semblante. Lacan, me parece, prepara a guinada em seu ensino ao se afastar do discurso universitário, rompendo a aparente fraternidade com a filosofia. Daí um entendimento do que não é semblante. Por outro lado, ele busca, ao promover a centralidade do gozo, imaginar qual o fim da análise: o fim em sua ambiguidade, tanto objetivo quanto encerramento.

Há, no entanto, também na virada de Lacan uma hipótese histórica, que tem como marco os eventos de Maio de 68, que atuou a queda dos semblantes em alguns domínios fundamentais da sociedade francesa - e por que não ocidental? - da qual ainda sentimos as reverberações. Destaco a revolução sexual dos anos 1960, junto à revolução das drogas, como fundamentais a esta hipótese, efeito-causa da queda do Nome-do-Pai. Do interior da ideia de que cada um pode gozar de seu corpo, sobretudo as mulheres, subjaz uma noção de usufruto, que Lacan retoma em seu seminário XX:


Eslarecerei com uma palavra a relação do direito com o gozo. O usufruto - é uma noção de direito, não é? - reúne numa palavra o que já evoquei em meu seminário sobre a ética, isto é, a diferença que há entre útil e o gozo. [...]. Quando temos usufruto de uma herança, podemos gozar dela, com a condição de não gastá-la demais. É nisso mesmo que está a essência do direito - repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo./ O que é o gozo? Aqui ele se reduz a ser apenas uma instância negativa. O gozo é aquilo que não serve para nada. (p.10-11).




O que há entre estas instâncias, entre o usufruto e o gozo, o útil e o inútil? Suspendo, por enquanto, uma tentativa de resposta, para retomar o contemporâneo e chegar à criança. Éric Laurent, em texto cujo título - "A criança no avesso das famílias" - já diz tudo, aborda a questão da família no declínio do Nome-do-Pai:


a família, no início da instalação do liberalismo, apareceu como o sonho de um laço social que se tornasse natural. Dois séculos mais tarde, é o direito que articula a família [...]. Os direitos específicos - direito fiscal, direito do trabalho, direito social, direito da imigração - remetem, agora, 'a substancialidade imediata do espírito' e 'a unidade sentida pelo amor' à condição de utopia. (p.11, grifo meu).


Mais à frente, continua Laurent: "é certo que não é mais a família que faz a criança". Asserção de todo interesse à questão aqui levantada: traduzindo-a, ter-se-ia algo como 'a criança não é feita mais via semblante'. Com efeito, como aponta o título do artigo, a criança está no avesso do semblante, sendo ela mesma o "ponto de junção natureza-cultura, a glândula pineal do sonho social" (p.12).


Isto é, a criança emerge no fogo cruzado entre gozo e direito, sobretudo no que diz respeito à perspectiva feminina. As mulheres têm direitos - ao trabalho, ao poder, mas principalmente à atividade sexual; há nessa constatação um desafio à posição histérica clássica, na qual as mulheres acessavam o nome concedendo a uma perda e visando um ganho, via identificação masculina, qual seja, através de um homem que lhe desse um filho. Hoje, este desvio é desnecessário, de modo que o belo sonho da família burguesa tende a colapsar. A triangulação obsessivo, histérica, criança obedecia ao devaneio neurótico que "quer se completar a partir do ideal de uma família como sintoma s(A)" (Laurent, p.17); hoje, "a tônica incide sobre a criança tomada não em um ideal, mas no gozo, o seu e o de seus pais. Por essa presença, a criança vem saturar a falta da mãe, ou seja, seu desejo" (p.17).


Com isto se chega à ideia de que a criança, como afirma Lacan em "Nota sobre a criança", "realiza a presença do objeto a na fantasia" (p.370), ou que ela funciona como "tampa que revela o objeto a 'liberado' pelo significante de Ⱥ" (Laurent, p.17). Aqui, tem-se o ponto nodal das angústias pseudo-familiares que giram em torno de um ideal desfalecido, cruzado por modos-de-gozo persistentes e endireitados. Tudo isto para dizer que a criança, na posição de objeto a desencadeado, habita a zona ambígua do furo no Outro, o litoral a que se refere Lacan em "Lituraterra": "o que se evoca de gozo ao se romper um semblante, é isso que no real se apresenta como ravinamento das águas" (Lacan, p.22). Vê-se assim como a criança pode ser encarada como ponto de sutura e de excesso de um arrebatamento histórico, e que já vem de décadas. Nisto reconhecemos as angústias de pais e mães contemporâneos, premidos por seus muitos direitos e também por seus inúmeros deveres ante a dinâmica neoliberal decadente, em que cada um não só é sua própria paróquia, mas também sua própria empresa à beira da falência.


Mas nem tudo é angústia. O inconsciente da criança, entrecortado por tantos vetores históricos, e sustentáculo daquele que é o despedaçamento de semblante fundamental de nossa época, é terreno fértil à psicanálise. Não é à toa que Lacan dedicou a última década de seu ensino à escrita que habita este litoral. De lá, podemos recolher os destroços desta implosão, fazendo novo uso dos significantes que descansam na orla, ao movimento do mar.

 
 
 

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