A psicanálise profana: o ato contra-civilizatório
- felipebierpsicanal
- Nov 17, 2021
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Texto apresentado nas X Jornadas da EBP-SP
Há um fato inescapável: a psicanálise nasce dentro de um império - o Austro-Húngaro - e emerge do seio de uma prática científica - a medicina - que fez, muitas vezes, o papel de braço forte da ideologia segregativa imperial. Para muitos críticos, aí estaria a marca de Caim que a psicanálise carregaria até o fim. A compreensão deste vínculo de nascença, no entanto, ajuda a compreender como, a despeito da crença de Freud no conhecimento, a psicanálise nasce em ato (talking cure ou chimney sweeping) em rebelião aberta ao mestre, fato desde sempre percebido por Lacan, e que informou profundamente sua elaboração clínico-teórica.
A psicanálise deixa-se precipitar numa relação específica com o saber, como bem indica Lacan em seu Seminário 16:
Não haveria discurso analítico, nem revelação da função do objeto a, se o próprio analista não fosse o efeito, ou, eu diria mais, o sintoma que resulta de uma certa incidência na história, que implica a transformação da relação do saber, como determinante para a posição do sujeito, com o fundo enigmático do gozo. [...] Em outras palavras, a psicanálise só aparece como sintoma na medida em que já está presente uma guinada do saber na história [...] que concentrou, por assim dizer, a função definida pelo objeto a, a fim de no-la oferecer, de colocá-la ao nosso alcance.
Nos é sabido que a psicanálise é o avesso do discurso do mestre, e a citação de Lacan ajuda a identificar, neste discurso, algo de que a psicanálise se aproveita: a saber, existe no discurso moderno um mecanismo segregativo que isola o objeto. Mas o que isso significa se entendermos que o discurso do mestre, este como o conhecemos hoje, se estrutura em bases imperiais, desde sempre fusionado ao discurso capitalista? O trilho a percorrer passa pelo conceito de saber, e tudo aquilo que é partir do saber mobilizado no pensamento ocidental: Anne McClintock alude a uma topologia que se inaugura no saber ocidental em torno do imperialismo; ela afirma:
no discurso colonial [...] o movimento no espaço é análogo ao movimento no tempo. A história se forma em duas direções opostas: o progresso da humanidade, passando da privação encurvada para a direção da ereta razão iluminada. O outro movimento apresenta o reverso: o retrocesso para o que chamo de espaço anacrônico [...] da vida adulta masculina, branca, na direção de uma degeneração negra primordial, geralmente encarnada nas mulheres.
A autora desenha aqui uma leitura da civilização como sintoma, no qual o jogo de alguns significantes - o branco, o educado, o viril - forma-se em contraponto à liminaridade - uma invaginação espaço-histórica que toma corpo no primitivo, na mulher, no negro. Vê-se assim que o saber está longe de ser neutro - disso já sabíamos - e que ele se faz ereto ao gerar uma zona de invaginação em suas bordas: isto é, ao criar o negro, o primitivo, o periférico, o selvagem, o feminino. Neste ponto estamos muito perto da descoberta freudiana do inconsciente, se o entendermos como esta invaginação do saber, continente escuro, uma invaginação em segundo grau, na qual a razão ereta encontra seu oco nos desejos sexuais reprimidos.
Assim se dessubstancializa o inconsciente:
Creio que há bastante tempo venho denunciando a ambiguidade que existe no uso do termo inconsciente. Como substantivo, é com efeito algo que tem como suporte o representante recalcado da representação. No sentido adjetivo, pode-se dizer que esse pobre Édipo era um inconsciente.[...] Há então esse mito de Édipo, tomado de Sófocles. E também, a conversa fiada de que lhes falava há pouco, o assassinato do pai da horda primitiva
Esta é uma elaboração que deriva diretamente da famosa asserção 'o inconsciente é a política'. Estamos aqui diante da ideia de que o inconsciente é tecido da mesma fibra de dois mitos: Édipo e o Pai da horda. Trata-se decerto de duas historinhas bastante modernas: a primeira, nascente dos dilemas vitorianos concernentes ao sexo e à domesticidade; o segundo, mito que envelopa o universal do 'progresso', já que estabelece uma irmandade em sua máxima 'para todos, a castração'. Retornamos ao Lacan pós-colonial 'avant la lettre':
Só conheço uma única origem da fraternidade - falo da humana, sempre o húmus -, é a segregação. [...] Nenhuma outra fraternidade é concebível, não tem o menor fundamento, como acabo de dizer, o menor fundamento científico, se não é por estarmos isolados juntos, isolados do resto. Trata-se de captar sua função, e de saber por que é assim. Mas, enfim, salta aos olhos que é assim, e fingir que isto não é verdade deve ocasionar forçosamente alguns inconvenientes .
O acento dado por Lacan à associação entre irmandade, ciência e resto é fundamental. De certo modo, ele lança a ciência no caldo segregatório e aponta para as bases frágeis de parte do projeto freudiano, sobretudo em Totem e tabu, que acerta em seu erro. Por outro lado, situa a questão em outro campo: trata-se menos de um plano de imanência do saber, e mais de um campo furado, que lhe contempla um ato em posição êxtima. Como afirma Luiz Fernando Carrijo da Cunha, "a falha no saber [...] da ciência é a força motriz que sustenta o 'ato' de criação da psicanálise".
Em certo ponto do Seminário 10, Lacan se refere, não sem ironia, ao herói-analista, como aquele que deve "internalizar esse a, tomá-lo a si como bom ou mau objeto". A caracterização irônica do analista como herói faz lembrar que nem todo ato do analista é um ato analítico: às vezes, o psicanalista age como senhor, salvando os analisandos de seu primitivismo. A incidência do ato em Lacan é, em si, dessegradadora, e opera portanto no avesso do tipo de corte que há no discurso do mestre: a interpretação não está do lado da retificação, do sentido, mas sim do vivo e do gozo, e por isso faz passar às tripas. De certo modo, o ato analítico é que o acorda o próprio analista de seu sonho imperial, e assim o reenvia ao local da subversão das ficções que, de dentro do império, teceram-se. Ao fazê-lo, age profanamente, liberando o gozo de seus usos sacralizados pelo discurso do mestre.
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